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segunda-feira, 10 de novembro de 2014

CRÔNICAS DA VIDA REAL: O HOMEM QUE EMPINAVA PIPAS


Lembro-me como se fosse hoje: Brisa batendo no rosto, carretel de linha numa mão, pipa estirada na outra mão, aguardando uma rufada ideal. Os melhores ventos passavam entre os fios e postes de minha rua. Mas minha casa não tinha uma elevação ou angulação que nos permitisse alçar as pipas. Porém, havia a caixa d´água da casa do "Seu Iraci Ferreira", o terreno baldio no centro do quarteirão, nas costas da oficina do "Seu Ari", ou na "Rua do Clube", para longas e persistentes corridas sem vento.

As pipas eram leves, feitas a mão, suaves, coloridas. Retratos de seus construtores. Uma pipa é feita com 70% de papel ou plástico, 10% de rabiolas, 2% de cola e 18% de linha (com ou sem cerol). Além disso, mais 50% de conhecimentos básicos de engenharia avançada e outros 50% de física arcaica.

As minhas primeiras pipas foram feitas por minha irmã Goretti. Minha madrinha, algoz das minhas armadilhas, guia dos meus atalhos. Cuja gargalhada encrustou no meu coração, pela singeleza e simpatia de aturar as minhas artimanhas e inquietações. Minha irmã caçula, Vera Regina, era minha companheira inseparável, fosse onde fosse, que sentido tivesse, que objetivo nos levasse. Felizmente, ela amadureceu mais rápido que eu e as pipas não lhe atraíram mais.

Minha primeira carretilha foi construída por meu irmão, José Luiz. Meu padrinho, meu exemplo profissional. E desde a minha juventude, meu exemplo de vida a dois, de amor incondicional e de respeito conjugal. Ele carrega na mão uma cicatriz, pois se cortou profundamente moldando as madeiras de uma carretilha. Porque queria me presentear com o melhor. Em contrapartida, eu carrego no coração uma marca, suave, desse momento de carinho e dedicação extrema; e 40 anos depois, Eu ainda tenho a carretilha, guardada como um troféu.

Meu velho pai não gostava da pipas. Só me viu pelejar com bola uma vez, mas elogiou (e sugeriu, criticamente, como melhorar). Me queria focado. Estudando, debruçado nos livros, como ele se debruçou toda a minha vida. Meu "velho Juca Ventura", já derrotado pelas agruras da vida, ainda me ensinava, em rufadas de tempestade, a navegar na calmaria.

Uma infância e adolescência de pipa em punho. Uma vida adulta feito pipa, alçando vôos e colorindo céus de outras pessoas. Meu primeiro voo foi decolado por minha mãe (Dona Luzia, exemplo de mãe, mulher e profissional), que à porta de um ônibus me pediu que sempre conduzisse o nome de meu pai tal como o recebera: LIMPO E DIGNO. E que sempre voltasse pra casa trazendo de volta o exemplo que Papai nos deu, de honradez w, integridade e dignidade, ainda que Seu Juca tenha sido uma "pessoa difícil".

Minha irmã mais velha (Aline), foi quem cortou minha primeira linha, permitindo que eu voasse ao sabor do vendo, mas com objetivos e não como uma "pipa avoada". Me mostrou a diferença entre ser adulto independente e ser adulto dependente. Me fez plainar, pela primeira vez, sem sustentação de um fio sequer.

Mas de todas as pessoas com quem cresci, talvez a mais ingênua seja a que mais me tocou o coração. Minha 2a irmã, Maria Madalena, portadora de necessidades especiais, com olhar e comportamento de criança e sentimentos de gente grande. Sua aura forte e seu carinho latente transcenderam o espaço físico de seu corpo franzino e frágil.E me ensinaram que "ser especial" é um comportamento e não uma dádiva.

Com o passar dos anos, minhas pipas pareciam não se sustentarem no ar. O vento que as fazia voar abrandou em meu coração. Minha inquietude quedou reflexiva, moderada, frugal. E eu amadureci com as doces lembranças de seus coloridos e seus bailados.

Depois da maturidade, Deus enlaçou minha linha no alto de uma rocha firme, que eu chamo carinhosamente de MEG. Empinei pipas poucas vezes com meus filhos. Talvez por falta de cola, linha, bambu ou papel, mas nunca por falta de tempo. Falha minha.

Mas nuns desses hiatos, atrasei trabalho pra ver sol nascer com um filho no Leme-RJ; desmarquei reunião importante pra empinar pipa com outro filho em Camburi-ES. E fui pegar no colo filho que precisava chorar mais que Eu.

Na vida, me cortei com muitos ceróis, variei com pouca brisa, naveguei nos furacões. Se cortei linha de alguém, é porque minha manobra no espaço foi mais precisa, e minha linha de sustentação era mais consistente.

Mas se às vezes tremulei, entre manobras ruins e boas,
Tenho certeza que colori, o céu de muitas mais pessoas.

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